O espetáculo “Outra” inicia com duas figuras que dividem o mesmo espaço cênico, transitando entre si como se a própria formação humana estivesse sendo construída ali, diante dos nossos olhos. Há algo de primitivo e, ao mesmo tempo, profundamente simbólico nesse encontro: dois corpos que se aproximam, se estranham e, pouco a pouco, revelam suas fragilidades ao se despirem. Neste gesto, o que vemos não é apenas a retirada de roupas, mas a exposição de uma espécie em descoberta — quase como dois homo sapiens reconhecendo-se pela primeira vez.
A cena revela a liberdade que cada indivíduo busca: pensar, andar, vestir-se e existir conforme seus próprios caminhos. Porém, o espetáculo nos lembra que essa liberdade nunca é plena. É justamente nesse encontro entre corpos e diferenças que a humanidade se constrói — e, junto dela, surgem também as tensões que atravessam a nossa história: preconceito, racismo, desigualdade de gênero e tantas outras estruturas criadas e mantidas pela própria sociedade.

Foto: Marcella Calixto
À medida que as cenas avançam, somos confrontados com tudo o que a humanidade segue tentando combater: os preconceitos que moldam relações, os direitos humanos que precisam ser reafirmados para pessoas negras, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+ e pessoas autistas. O espetáculo cria imagens potentes que revelam como esses corpos são tensionados, silenciados e empurrados para a margem.
No desfecho, a obra nos provoca a encarar um dilema profundo: apesar de toda a evolução humana, ainda tentamos “engolir” o outro — impor nossos medos, defeitos, padrões e violências sobre quem é diferente. “Outra” nos obriga a pensar que a humanidade precisa ser reconstruída. É urgente desconstruir comportamentos que nos acompanham desde os tempos mais primitivos, quase como se estivéssemos ainda presos ao instinto bruto do “homem das cavernas”.
O espetáculo, portanto, não apenas apresenta uma narrativa, mas convoca um exercício de autocrítica: quem somos diante do outro? E o que ainda precisamos transformar para, enfim, sermos verdadeiramente humanos?